Música

terça-feira, 21 de junho de 2011

Crônica - A Cobrança -Moacyr Scliar


A Cobrança - Moacyr Scliar

Ela abriu a janela e ali estava ele, diante da casa, caminhando de um lado para outro. Carregava um cartaz, cujos dizeres atraíam a atenção dos passantes: "Aqui mora uma devedora inadimplente".
        ― Você não pode fazer isso comigo ― protestou ela.
      ― Claro que posso ― replicou ele. ― Você comprou, não pagou. Você é uma devedora inadimplente. E eu sou cobrador. Por diversas vezes tentei lhe cobrar, você não pagou.
        ― Não paguei porque não tenho dinheiro. Esta crise...
        ― Já sei ― ironizou ele. ― Você vai me dizer que por causa daquele ataque lá em Nova York seus negócios ficaram prejudicados. Problema seu, ouviu? Problema seu. Meu problema é lhe cobrar. E é o que estou fazendo.
        ― Mas você podia fazer isso de uma forma mais discreta...
       ― Negativo. Já usei todas as formas discretas que podia. Falei com você, expliquei, avisei. Nada. Você fazia de conta que nada tinha a ver com o assunto. Minha paciência foi se esgotando, até que não me restou outro recurso: vou ficar aqui, carregando este cartaz, até você saldar sua dívida.

        Neste momento começou a chuviscar.
        ― Você vai se molhar ― advertiu ela. ― Vai acabar ficando doente.
        Ele riu, amargo:                                                                                                                     
        ― E daí? Se você está preocupada com minha saúde, pague o que deve.
        ― Posso lhe dar um guarda-chuva...
        ― Não quero. Tenho de carregar o cartaz, não um guarda-chuva.
        Ela agora estava irritada:
       ― Acabe com isso, Aristides, e venha para dentro. Afinal, você é meu marido, você mora aqui.
      ― Sou seu marido ― retrucou ele ― e você é minha mulher, mas eu sou cobrador profissional e você é devedora. Eu avisei: não compre essa geladeira, eu não ganho o suficiente para pagar as prestações. Mas não, você não me ouviu. E agora o pessoal lá da empresa de cobrança quer o dinheiro. O que quer você que eu faça? Que perca meu emprego? De jeito nenhum. Vou ficar aqui até você cumprir sua obrigação.
       Chovia mais forte, agora. Borrada, a inscrição tornara-se ilegível. A ele, isso pouco importava: continuava andando de um lado para outro, diante da casa, carregando o seu cartaz.
                                                                                                                           O imaginário cotidiano. São Paulo: Global, 2001.

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